Há momentos na vida em que o inesperado nos proporciona gratas surpresas. Para mim, encontrar o livro “Escrever é Preciso” de Mario Osorio Marques (1) foi uma delas. Leitura muito agradável e convidativa. Na primeira passagem do texto, o autor afirma que é necessário escrever para pensar. Concordo com ele. Afinal, a filosofia contemporânea explica que o pensamento depende da linguagem, muito mais do que dizem por aí.
A noção tradicional do pensamento como algo etéreo e a linguagem como mero instrumento de transmissão foi uma construção da modernidade. Este pressuposto é a herança de um período histórico que atribuiu à razão humana o poder de explicar e transformar o mundo, quando a mente foi qualificada como “[...] o lugar onde reside o pensamento. O lugar onde está a alma, o que faz ser o que somos” (2).
Contudo, no campo da filosofia, esta noção foi gradualmente questionada num processo histórico conhecido como giro linguístico. O giro foi, por assim dizer, uma sucessão de reflexões e críticas teórico-filosóficas que evidenciaram o papel constitutivo da linguagem, em radical oposição a perspectiva descritivo-instrumentalista (3). É a partir deste referencial que se pode entender o pensamento, não mais como o produto exclusivo da mente de um sujeito, mas como resultado da linguagem em ação.
Marques nos explica que “fomos ‘alfabetizados’, em obediência a certos rituais. Fomos induzidos a, desde o início, escrever bonito e certo. [...] Isto estragava, porque bitolava, o começo e todo o resto. [...] necessitamos nos reeducar para fazer do escrever um ato inaugural: não apenas transcrição do que tínhamos em mente, do que já foi pensado ou dito, mas inauguração do próprio pensar” (4).
Para inaugurar a escrita (ou melhor, o próprio pensamento) Marques convida a conversar com interlocutores invisíveis, mas sempre presentes (5), algo como conversar com os próprios botões, por meio da escrita. Mas, conversar consigo mesmo é também conversar com os outros de maneira atemporal. O pensamento enquanto atividade não se opera (fenomenologicamente) de modo isolado (na mente). Pode parecer estranho, mas, em outras palavras, nossos pensamentos não são “nossos”, no sentido de algo que emana de nós, independente da linguagem. Quando estamos sozinhos (pensando, refletindo) bricolamos com a carga de signos e significados que nos constitui histórica e existencialmente em sociedade. “A existência humana, o que para os seres humanos representa a experiência da existência, é realizada pela linguagem. A linguagem representa para os seres humanos, no dizer de Nietzsche, uma prisão da qual não se pode escapar; e, no dizer de Heidegger, a morada do seu ser. Os seres humanos habitam na linguagem.” (6) Portanto, pensamento e texto estão reciprocamente imbricados de modo que não apenas pensamos para escrever, mas, principalmente, talvez devamos escrever para pensar.
Prof. Alejandro Knaesel Arrabal
REFERÊNCIAS
(1) MARQUES, Mario Osorio. Escrever é preciso: o princípio da pesquisa. 4. ed. Ijuí: Editora Unijuí, 2003.(2) ECHEVERRÍA, Rafael. Ontología del Lenguaje. 6. ed. Chile: J. C. Sáez, 2003, p. 15.
(3) Para saber mais sobre o Giro Linguístico, recomendo a leitura de GRACIA, Tomáz Ibanez. O “giro linguístico”. In: IÑIGUEZ, Lupicinio. Manual de análise do discurso em ciências sociais. Petrópolis: Vozes, 2004, p. 19-49.
(4) MARQUES, 2003, p. 13.
(5) MARQUES, 2003, p. 13-14.
(6) ECHEVERRÍA, 2003, p. 21.
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