À procura da sentença de Cristo

No início da década de 90, quando ingressei no curso de direito, adquiri um pequeno livro, cujo título sugeria grande utilidade aos olhos de um iniciante no mundo jurídico: “Livro básico do advogado” (QUADRA, 1980). Nesta obra, um dos capítulos finais chamou minha atenção. O título: “A Sentença de Cristo”. Fiquei muito impressionado com o conteúdo. Afinal, minha convicção de fé reconhecia nele uma verdade histórica. Não bastasse esta certeza, constava no preâmbulo do texto um breve parágrafo com a seguinte afirmação: “Cópia Autêntica da Peça do Processo de Cristo, existente no Museu da Espanha”.
Trago o referido texto na íntegra:
No ano dezenove de TIBÉRIO CÉSAR, Imperador Romano de todo o mundo, Monarca invencível na Olimpíada cento e vinte e um, e na Elíada vinte e quatro, da criação do mundo, segundo o número e cômputo dos Hebreus, quatro vezes mil cento e oitenta e sete, do progênio do Romano Império, no ano setenta e três, e na libertação do cativeiro de Babilônia, no ano mil duzentos e sete, sendo governador da Judéia Quinto SÉROIO, sob o regimento e governador da cidade de Jerusalém, Presidente Gratíssimo, PÔNCIO PILATOS; regente na Baixa Galiléia, HERODES ANTIPAS; pontífice do sumo sacerdote, CAIFÁS; magnos do Templo, ALIS ALMAEL, ROBAS ACASEL, FRANCHINO CEUTAURO; cônsules romanos da cidade de Jerusalém, Quinto CORNÉLIO SUBLIME e SIXTO RUSTO, no mês de março e dia XXV do ano presente – EU, PÔNCIO PILATOS, aqui Presidente do Império Romano, dentro do Palácio e arqui-residência, julgo, condeno e sentencio à morte, Jesus, chamado pela plebe – CRISTO NAZARENO – e Galileu de nação, homem sedicioso, contra a Lei Mosaica – contrário ao grande Imperador TIBÉRIO CÉSAR. Determino e ordeno por esta, que se lhe dê morte na cruz, sendo pregado com cravos como todos os réus, porque congregando e ajustando homens, ricos e pobres, não tem cessado de promover tumultos por toda a Judéia, dizendo-se filho de DEUS e REI de ISRAEL, ameaçando com a ruína de Jerusalém e do sacro Templo, negando o tributo a César, tendo ainda o atrevimento de entrar com ramos e em triunfo, com grande parte da plebe, dentro da cidade de Jerusalém. Que seja ligado e açoitado, e que seja vestido de púrpura e coroado de alguns espinhos, com a própria cruz aos ombros para que sirva de exemplo a todos os malfeitores, e que, juntamente com ele, sejam conduzidos dois ladrões homicidas; saindo logo pela porta sagrada, hoje ANTONIANA, e que se conduza JESUS ao monte público da Justiça, chamado CALVÁRIO, onde, crucificado e morto ficará seu corpo na cruz, como espetáculo para todos os malfeitores, e que sobre a cruz se ponha, em diversas línguas, este título: JESUS NAZARENUS, REX JUDEORUM. Mando, também, que nenhuma pessoa de qualquer estado ou condição se atreva, temerariamente, a impedir a Justiça por mim mandada, administrada e executada com todo o rigor, segundo os Decretos e Leis Romanas, sob as penas de rebelião contra o Imperador Romano. Testemunhas da nossa sentença: Pelas doze tribos de Israel: RABAIM DANIEL, RABAIM JOAQUIM BANICAR, BANBASU, LARÉ PETUCULANI. Pelos fariseus: BULLIENIEL, SIMEÃO, RANOL, BABBINE, MANDOANI, BANCURFOSSI. Pelos hebreus: MATUMBERTO. Pelo Império Romano e pelo Presidente de Roma: LUCIO SEXTILO e AMACIO CHILICIO.
Mais de 10 anos após este episódio, já na era da Internet, novamente diante deste texto e movido pela curiosidade ousei indagar: em qual museu da Espanha estaria guardado este documento? Imaginei que seria fácil encontrar a resposta. Durante dias dediquei várias horas pesquisando o assunto na web (isto em 2004). O que encontrei na época formam centenas de links com cópias literais do mesmo texto. Muitos se referiam a um “museu da Espanha”, outros a um “museu de Madrid”, outros ainda a uma “biblioteca de Madrid” e nada mais. Fiquei um tanto frustrado. Afinal, um documento de tamanha importância não deveria ser tão difícil de achar. 
Ocorre que durante a pesquisa encontrei referência a publicação de João Luís Rodrigues Gonçalves cujo título é “Julgamento de Cristo: análise jurídica” (2002). Não tive dúvida. Entrei em contato com o autor por e-mail na esperança de obter a resposta. Em poucos dias recebi o retorno e um exemplar da obra. Na época, Gonçalves afirmou não ter informações mais precisas sobre o referido museu ou biblioteca. Quanto à sentença, assim como mencionado em seu trabalho, destacou tratar-se “[...] de uma reconstituição da sentença de Cristo elaborada a partir dos vários relatos conhecidos sobre o julgamento [...]” (GONÇALVES, 2002, p. 27). 
Na obra, o autor registra ainda que:
[...] uma das principais dificuldades para análise jurídica do julgamento de Cristo é a falta de documentação histórica da época sobre o processo. Os evangelhos foram escritos décadas após a morte de Cristo e inspirados numa perspectiva de fé. [...] Outra dificuldade de reconstituição do julgamento resulta do facto de Cristo ter sido julgado segundo a forma do processo "extra ordinem". Tratava-se de uma forma de processo simplificada, essencialmente verbal (logo, pouco documentada). (GONÇALVES, 2002, p. 10)
Portanto, salvo prova em contrário (aguardo colaborações), este texto vem sendo replicado há décadas, mas, trata-se apenas de uma representação do que poderia ter sido a sentença de cristo, criada por autor desconhecido, em época e lugar também desconhecidos.
Trago este relato ao blog como um exemplo da necessária acuidade na pesquisa, para que não sejamos facilmente convencidos por discursos e relatos quem atendam às nossas paixões.
Quanto à minha fé, esta permanece inalterada. Não depende de prova.
Uma ótima Páscoa para todos.
Prof. Alejandro Knaesel Arrabal

OBS: confira também o post "Encontrada a sentença de Cristo"

REFERÊNCIAS
GONÇALVES, João Luís Rodrigues. Julgamento de Cristo: análise jurídica. Faro, 2002.
QUADRA, Manoel Fernandes. Livro básico do advogado. Rio de Janeiro: Ediouro, 1980.

5 de abril de 2012

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